elisa bracher_

26 mar_2003 - 13 mai-2003

elisa bracher_

QUASE ÁRVORES / NÃO ÁRVORES / SILÊNCIO

 

O peso é para mim um valor.

Richard Serra

 

O fascínio do material é um perigo, ele nos pa-

ralisa, a beleza nos corrompe. Parece que a beleza

tem a ver só com aquele minuto presente do olhar.

Elisa Bracher

 

Duas coisas surpreendem no trabalho de Elisa Bracher:a escala e a força. Ambas são de ordem qualitativa. A primeira remete à monumentalidade da forma, a segunda à intensidade da matéria. Seja na gravura, seja na escultura, o trabalho começa pelo reconhecimento de um silêncio originário que pena para se manifestar em um mundo já todo constituído e institucionalizado. Silêncio-negro, silêncio-grave, silêncio-peso, silêncio que é forma em gestação.

 

Não se trata de recusa ingênua do mundo institucional, nem de uma rejeição expressionista da ordem civilizada, mas de um recuo diante do medo da escuridão organizada. Recuar no sentido de ainda querer deixar alguma coisa constituir-se a partir de uma vocação própria e desinteressada da matéria – não determinada por usos externos e eficientes. O acontecimento da forma não é um resultado mas um processo que vai se realizando atento às “vontades” da matéria. Vem-me aqui uma história sobre Goeldi: o artista freqüentava o Jardim Botânico para “conhecer” as árvores, tocá-las eventualmente, ganhando assim uma nova intimidade com o material de sua ação poética, um outro respeito diante dos seus desígnios.

 

Isso pode soar tradicional demais, mas não se trata disso. Basta olhar a escala e a envergadura destas peças de Elisa Bracher para que se desfaça o engano. Em uma época onde nada mais parece resistir à manipulação generalizada, onde tudo se torna qualquer coisa, enfrentar e respeitar a resistência e o silêncio das coisas é uma maneira de quebrar

as expectativas quanto ao que se deve esperar da arte (e das possibilidades da vida). Há

uma extemporaneidade nestes trabalhos que deve ser destacada em nome da própria diversidade – enquanto diferença – do mundo em que vivemos. Esta inatualidade não

vem pelo uso da gravura e/ou da escultura, mas, principalmente, pela crença na fisicalidade do ato criativo e na opacidade da linguagem artística.

 

Nas esculturas o embate físico já começa com a escolha da madeira. Em tese, para

o “minuto presente do olhar”, esta etapa é indiferente. Seja quem for que as escolha, estando autorizada com o selo verde 2, a madeira é matéria-prima para o trabalho. Mas isto só em tese. Para estas esculturas, para a vida da forma e a constituição da força que as põe de pé, a entrada na floresta, a aproximação da árvore, o reconhecimento do território,

tudo isso é importante para a aquisição de uma brutalidade amena que lhe é tão própria.

 

De certo modo, tomando-se uma certa timidez de escala da tradição escultórica brasileira – mesmo Amilcar de Castro pouco atreveu-se à monumentalidade – as peças de Bracher e sua escala monumental parecem querer abrir um diálogo novo com esta natureza assombrosa que nos cerca. Mesmo em nossas cidades não deixa de ser impactante a presença de certos “ficus” e suas raízes musculosas, quase barrocas, dos oitis e ipês, além, é claro, da mata atlântica circundante. Guardadas todas as diferenças, vejo um certo parentesco com a poética de Nelson Felix. Há nos dois artistas uma vontade de reposicionamento diante de uma natureza sublimada, assumindo-a como potência civilizatória alternativa a um ocidente tecno-desertificado. As energias material e simbólica misturam-se aí.

À primeira vista, estas enormes toras podem sugerir uma certa acomodação diante da crise vivida cotidianamente pela destruição das florestas. Todavia, vejo na dignidade e verticalidade assumidas por estas toras totêmicas uma aposta ética na repotencialização de sua força vital, uma forma de lhes devolver a possibilidade de serem por si e para si. A própria dificuldade “comercial” destas esculturas, sua dimensão essencialmente pública, aponta na mesma direção – estas peças estão convencidas da sua inadaptabilidade. Quando “crescem” em praças e estradas ganham uma distinção singular, não sendo nem bem natureza, é claro, nem apenas escultura. Não obstante os pinos atravessando os troncos, elas se equilibram com uma nobreza singular. No mínimo, a evidência do vigor e da beleza destas quase árvores/não árvores, que se entranha em nosso corpo, em nossa memória afetiva, indo além do “minuto presente do olhar”; nos obriga a rever os usos (e desusos) de sua apropriação tacanha e institucionalizada.

 

O facetamento geométrico que a artista realiza não expulsa a vibração orgânica da madeira. De certo modo, estas “árvores” não deixaram de ser natureza para tornarem-se escultura; na verdade, dá-se o contrário: a ação escultórica devolveu energia e vigor, ou seja, vida, à madeira. Parece impossível que elas se fixem em posições tão angulosas, desequilibradas mesmo, sem um anteparo que as sustente. Mas não, elas se sustentam pelo peso e estão agarradas pela tensão entre a verticalidade e a gravidade. O espaço entre chão e céu ainda está sem contorno, varia conforme o montanhoso aspecto do chão (E.B.). Da fixidez desprendem-se movimentos inesperados e surpreendentes. Uma vez próximos das peças, o fascínio é outro. São os detalhes mínimos e variados da madeira, sua textura e cor, que nos encantam. Há toda uma temporalidade entranhada naqueles veios. Sem concessão de qualquer ordem, estas esculturas se impõem afirmativa e silenciosamente.

 

Algo parecido se passa com as gravuras. O que normalmente é ofício artesanal ganha aqui uma envergadura de instalação – a escala não é a da mão e do olho, mas do corpo e do espaço. O peso do negro traz a gravura para uma horizontalidade oceânica que por sua vez é tensionada por uma geometria instável que tende a movimentá-la na vertical. Ao abrir uma janela, o olhar desloca-se naturalmente para o céu, ou para o amplo horizonte. É suposto que o chão esteja ali firme e plano, capaz de sustentar as oscilações do olhar. Na hora de olhar para baixo, constata-se o quanto o esperado não corresponde à realidade. O chão minúsculo debaixo dos pés é tão montanhoso quanto o horizonte avistado do lado de lá da

janela. O chão e o mar (E.B.). Como as esculturas, as gravuras são brutas e amenas, monumentais e econômicas. O que mais interessa na poética de Elisa Bracher – daí sua força como escultora – é seu compromisso com a gravidade. O peso, para ela, também é um valor.

 

Luiz Camillo Osorio, março de 2003

 

1 As citações da artista saíram de nossa correspondência via e-mail e aparecem no texto com a marca E.B.

2 A madeira usada nessas esculturas provém de um projeto com plano de manejo sustentável.